
Casamento por interesse
Por pressuposto, o casamento (como instituição ou contrato oneroso)
não tem vício redibitório (art. 441, Código Civil), não tem defeitos
ocultos, que o tornem inadequado à vida coexistencial do casal. A
utilidade do casamento, ou seja, a aptidão ao uso a que se destina o
casamento é o amor que unifica o casal no seu projeto de vida. Bem é
dizer, então, que o interesse do casamento é a realização comum.
Consabido que o casal é o começo da história humana (Gn. 1,26.28.31) e
que o princípio da mútua pertença implica na sua razão de existência,
tenha-se a tudo isso paradigmático o vínculo que une homem e mulher
com o termo amor (Mt. 19, 4s). Na visão paulina, o de "quererem-se
entre si, como parte um do outro". Quem ama sua mulher ama a si mesmo
(Ef. 5,28).
É neste espaço relacional que o casal se reconhece como entidade, a
construir a família a partir da eficácia da união. Em menos palavras,
na complementaridade um do outro. O casamento perfeito simbolizado na
Estrela de David, que é formada por duas estrelas, entrelaçadas entre
si mas guardando suas próprias individualidades. Um Casal Entidade,
como símbolo ou protótipo de união idealizada de comunhão de vida, o
de vida a sempre.
A relação do casal a ser estabelecida deve ter o ânimo de
definitividade. Não deverá ser precária ou provisória. Como o
interesse do casamento é o amor que determina a união, desse modo, o
par sobreviverá uno, a cada dia novo. E com este Casal Entidade, a
própria união ("lato sensu") por ele formada. Afinal, somente assim,
dignos do Amor do outro, o celebrarão vida a sempre, para que a
felicidade os consagrem permanentes perante a vida e o próprio Amor
que os unem.
O casal, portanto, é o duo paritário, em amor, direitos e deveres.
Afinal, o êxito do casal impõe e compromete o homem e a mulher à
conjugação de uma ordem dialogada e permanente de vida a dois. Assim,
Deus viu tudo quanto havia feito e achou que estava muito bom (Gn.
1,31).
Pois bem. E quando o defeito oculto é imperceptível à diligência
ordinária do contraente, induzido a erro por pressupor que o interesse
do outro ao casamento seria o do amor e não motivado por interesse
financeiro? A constatação superveniente de tal fato produz efeitos
jurídicos? Claro que sim. O casamento contraído sob a égide do mero
interesse patrimonial caracteriza erro essencial de pessoa,
suscetível, portanto, de ser anulado (art. 1.557 do Cóigo Civil).
O caso da novela "Amor à Vida", onde o vilão Thales (Ricardo Tozzi)
diz amar a orfã milionária Nicole (Marina Ruy Barbosa) que, em estado
terminal de um câncer raro, admite com ele casar-se, de imediato,
repete como obra de arte os fatos da vida.
Na vida real, Volmir (35), agricultor de Planalto (RS), "humilde e
ingênuo", em expectativa de receber vultosa indenização, conheceu
Odete (45) em encontro promovido pelo pai dela. Óbvio, daí, que ao
encontro premeditado, seguiu-se imediato namoro e união livre, com
diretivas de casamento que, também por óbvio, realizou-se rapidamente;
certo também que a tanto, celebrou-se, logo ao primeiro mes de namoro,
pacto nupcial onde o regime patrimonial eleito foi o da comunhão
universal de bens. Sucedeu, porém, que, um mês depois, Volmir não
recebeu o pagamento da esperada indenização e Odete, por óbvio
frustrada, abandonou a casa.
Acórdão da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
constitui, agora, o capítulo final da novela real. É o do Processo nº
70052968930/2013, datado de 2 de maio passado, com provimento ao
recurso de apelação onde Volmir pretendeu a anulação de seu casamento,
indicando que foi induzido a erro a contrair núpcias com Odete, com
ele casada por mero interesse econômico.
A decisão do relator, desembargador Luiz Felipe Brasil Santos,
acompanhada à unanimidade de seus pares, é paradigmática, a dizer
suficientemente evidenciado que "o casamento foi realizado a partir de
premissa do amor desinteressado que se fragilizou rapidamente e se
revelou como puro interesse patrimonial, o que configura erro
essencial quanto à pessoa da apelada." Vale a pena transcrição do
acórdão:
"Apelação Cível. Anulação de casamento. Alegação de erro essencial.
Sentença reformada pela especificidade do caso. Doutrina. Precedentes
jurisprudenciais. - O apelante, pessoa de pouca instrução, se viu
rapidamente envolvido e, concomitantemente ao momento que conheceu a
recorrida, já firmou pacto antenupcial de comunhão universal de bens
e, em 30 dias, se casaram. Os fatos que dão causa ao pedido
(ingenuidade do varão, ignorância acerca das consequencias da escolha
do regime de comunhão universal de bens e alegação de que a mulher
pretendia, apenas, aquinhoar seu patrimonio), no caso dos autos, são
suficientes para caracterizar hipótese de erro essencial (art. .1557
do CCB - erro quanto à honra e boa fama)."
Efetivamente, este casal é um casal sazonal, onde as esperanças
transmudam-se em ilusões, em prazos curtos. Como disse Sinead O´Connor
(cantora irlandesa): "Desculpe por não ser uma mulher mais normal" -
dirigindo-se ao marido Barry Herridge, no momento da separação de
ambos. Um casamento de apenas dezoito dias, embora não tenha sido
contraído por razões economicas.
Mas não é só. A decisão gaúcha faz demonstrar também factível a
possibilidade material de vicio de consentimento em estipulações do
pacto antenupcial de bens. Isto porque, como contrato de definição do
regime patrimonial, é anulável o negócio jurídico quando as
declarações de vontade emanarem de erro substancial (artigo 138,
Código Civil); constituindo o erro sustancial o erro de fato por
recair sobre circunstancia de fato, ou mais precisamente, "sobre as
qualidades essenciais da pessoa ou da coisa".
Como visto, os Thales e Odetes, vilões de novela e da vida, por certo,
não ficam incólumes, ao fim e ao cabo dos casamentos de interesses.
Afinal, o casamento, "antes obrigatório, agora uma opção cultural"
(Andrew Cherlin, 2008), será sempre uma instituição fundada pela idéia
de infinitude dos casais que a formam; não tem prazo de validade. Por
inequívoco, a fenomenologia do casal, em todos os tempos, indica que o
único interesse do casamento deverá ser, sempre, o da celebração da
vida feita a dois, unidos por amor.
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JONES FIGUEIRÊDO ALVES - o autor do artigo é desembargador decano do
Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do Instituto
Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), coordena a Comissão de
Magistratura de Família. Assessorou a Comissão Especial de Reforma do
Código Civil na Câmara Federal. Autor de obras jurídicas de direito
civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras
Jurídicas (APLJ).